quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Esses neguinho aí

"Nego abre os braços e a voz, talvez seja sua vez..."

        Neguinho nasceu pobre numa cidade rica, mas sempre ouviu dizer que as coisas estão melhorando porque seus pais nasceram pobres numa cidade pobre. Os pais de Neguinho foram morar numa cidade grande. A mãe de Neguinho dormiu na fila para colocar ele na escola perto que ela acha que é muito boa, porque além de deixarem Neguinho ocupado, eles ainda dão comida e ensinam inglês, tudo de graça. Enquanto Neguinho estuda, seus pais trabalham com carteira assinada e tudo. Neguinho é um filho do progresso, sempre se ouviu dizer que ele ia chegar. Parece que chegou.

O pai de Neguinho carrega o peso que ninguém quer carregar e a mãe de Neguinho limpa a sujeira que ninguém quer limpar, mas é melhor do que a roça. Neguinho, eles sabem, não vai fazer nada disso. Neguinho vai formar e ser importante. Vai trabalhar em computador. Agora é assim, tem faculdade de graça, curso de graça, casa de graça, tem remédio de graça, mas tem que dar sorte de achar. Só que a comida tá cara, a passagem então, nem se fala... Mas isso não é nada, porque as coisas estão sim melhorando.  Prova disso é que os pais de Neguinho acabaram de pagar o computador dele e a TV grandona e fininha, então compraram um celular novo para ele, com internet e tudo, porque o velho tinha sido roubado. Neguinho não sai da internet, o dia todo, não pega um livro pra nada e fala que na internet tem tudo. Deve mesmo de ter, é o progresso que chegou. Não dá mais pra negar.

Dia desses, Neguinho arranjou um bico e comprou umas roupas, tudo de marca. No outro mês comprou um tênis e foi o salário todinho. Agora, com sua roupa nova, seu tênis novo e seu celular moderno, Neguinho saiu do trabalho falando que era explorado. Devia mesmo de ser, e menino que vai estudar para ser importante não tem que ficar lavando o carro dos outros não.

Neguinho mora num lugar chamado “Longe”. Ele não sabia que morava em “Longe” até alguém que mora em “Perto” falar para ele. Os pais de Neguinho trabalham em “Perto”, saem cedo e chegam tarde. O pai de Neguinho queria comprar um carro, o carro até dá pra juntar e comprar parcelando bem, mas o imposto e o combustível são caros demais e, com as prestações que já tem, não dá não. Então, o pai e a mãe de Neguinho têm que pegar ônibus em "Longe" com todo mundo que trabalha em "Perto".

Enquanto fica lá, com aquele povo todo, vendo a cidade passar e ficar mais bonita, a mãe de Neguinho fica pensando que, quando for a vez dele, ele vai morar em "Perto", numa casa que vai comprar com seu dinheiro do emprego importante. Ele vai honrar o nome de presidente americano que recebeu e não vai mais lavar carro de ninguém, nem o dele mesmo. Neguinho vai ter seus próprios neguinhos para fazer esses serviços.  

Nesse fim de semana, Neguinho pegou um dinheiro com a mãe, que não contou nada pro pai, colocou sua roupa nova, seu tênis novo e uma música barulhenta no seu celular. Neguinho foi dar um rolê no shopping, tava os neguinho tudo lá, combinaram pela internet. Neguinho viu que tinha muita gente e achou que ia dar alguma coisa errada, porque a polícia não gosta de gente igual Neguinho aglomerada. A polícia vê os neguinho tudo junto e chama de baderna. Lá em "Longe", todo mundo sabe disso porque assiste o noticiário sensacionalista ao vivo pela janela. O chefe da polícia mandou separar os neguinho mesmo sem saber o que eles iam fazer, porque coisa boa não era. Neguinho correu do gás e da bala. Já tá acostumado a ouvir pipoco e correr, mas não no shopping. Os neguinho saíram no jornal e tão se achando. Combinaram outro rolezinho, agora num shopping que fica lá em "Perto". Aí, o povo todo tá com medo. Até o prefeito mandou chamar os neguinho para conversar.

O prefeito é um cara que nasceu rico, na mesma cidade rica. No jornal, falam que era classe média, mas a família tinha loja e quem tem loja é rico. E em loja de rico, pobre só entra pra trabalhar. Na loja do seu Haddad, nunca teve rolezinho nenhum. O prefeito estudou em Universidade muito boa, que é pública e de graça, mas não é pros neguinho. Os neguinho ganham faculdade de graça, mas não é boa. Vão reclamar do quê? O primo de Neguinho conseguiu um diploma assim, agora ele tem um cargo com nome importante, mas ganha quase o mesmo que Neguinho quando lavava carro. Grande coisa esse progresso, é o que o Neguinho pensa.

Quando coloca sua roupa cara, dizem que Neguinho está ostentando. Ostentar e quando gente pobre usa coisa de rico. Muita, muita, muita gente se incomoda com os neguinho ostentando. Falam de perda de valores, de obsessão pelo material, falta de cultura e de família. Mas os jovens que moram lá em Perto, que estudam em escola boa e cara, para ter emprego bom e que paga bem, aprendem com seus pais, desde muito cedo, a colocar o “ganhar bem” acima de tudo. Esses jovens gastam todo o dinheiro dos pais nos shoppings de "Perto" ou nos outlets de Miami, onde neguinho não é bem-vindo . 

A história de Neguinho é cheia de clichês, o problema é que Neguinho mora num lugar onde quase todos os clichês são verdade. Onde todo mundo quer ganhar bem, se dar bem, comprar coisa cara e expor pra quem quiser ver. Quem mora "Longe" e quem mora "Perto", quem estuda em escola boa e em escola ruim, para infelicidade geral da nação, temos todos os mesmos valores. Ou, como diz aquela letra do Caetano: “Neguinho que eu falo é nóis!”.



Neguinho (Caetano Veloso)

Neguinho não lê, neguinho não vê, não crê, pra quê
Neguinho nem quer saber
O que afinal define a vida de neguinho
Neguinho compra o jornal, neguinho fura o sinal
Nem bem nem mal, prazer
Votou, chorou, gozou: o que importa, neguinho?
Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei: neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho
Se o nego acha que é difícil, fácil, tocar bem esse país
Só pensa em se dar bem - neguinho também se acha
Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro, um  GPS e acha que é feliz
Neguinho também só quer saber de filme em shopping
Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei: neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho
Se o mar do Rio tá gelado
Só se vê neguinho entrar e sair correndo azul
Já na Bahia nego fica den'dum útero
Neguinho vai pra Europa, States, Disney e volta cheio de si
Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho
Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo
Mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo
Nego abre banco, igreja, sauna, escola
Nego abre os braços e a voz
Talvez seja sua vez:
Neguinho que eu falo é nóis
Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei: neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho

sábado, 10 de agosto de 2013

A grande biblioteca de tipos

Na escola, tinha uma colega que não gostava muito de ler. Evidentemente, não era boa aluna, mas quem olhasse assim de relance, nem suspeitaria. Frequentemente era encontrada na biblioteca. Olhava as prateleiras por longos minutos e escolhia o maior exemplar que enxergasse. Tinha que ser um livro grande, vistoso, com um título que chamasse a atenção, como Cem anos de solidão ou algo parecido.

Levava o trambolho para cima e para baixo, pátio, cantina, quadra, banheiro, na esperança de que a escola toda a visse com o livrão nas mãos. O grande mistério é que nunca foi vista com o livro aberto, nem correndo os olhos pelas páginas. Nada. Decorava o título, o autor, a sinopse e nada mais.

─ E aí fulana, tá gostando do livro?
─ Estou, é ótimo, fala sobre (pequeno resumo lido na orelha)... Muito bom.

Não era leitora, mas tinha uma identidade de leitora e isso lhe bastava. Na escola, todos precisam ter uma identidade. É obrigatório pertencer a uma tribo e condenar todas as outras. Mais ou menos como uma rede social de pequenas proporções. Sempre foi assim, as pessoas se enganavam seis horas por dia e eram felizes assim. Nossa colega carregava livros imensos, mas chegava em casa e passava a tarde inteira vendo Vale a Pena Ver de Novo e Sessão da Tarde, e estava tudo bem. Aí inventaram a rede social de grandes proporções e a coisa toda degringolou de vez.

Globalizaram os grupinhos separados no pátio. Agora cada grupinho tem centenas de milhares de pessoas que estão ali para mostrar que ninguém está sozinho, mas também para fiscalizar a sua verdadeira disposição de gostar do que diz que gosta. E isso nos leva aos “amantes de livros dos tempos modernos”. Esse tipo que não precisa ler nem a orelha e decorar a sinopse: ele só copia, cola, acha uma foto bacana, posta e tá tudo certo.

Nunca foi tão fácil parecer qualquer coisa. Tenho conhecido “leitores vorazes” que tem pequenos ataques ao ouvir o nome de autores consagrados, mais ou menos como fãs de cantores adolescentes. Gente que sempre tem uma lista enorme de leitura pela frente, que surta com marcadores de páginas, capas assim, contracapas assado, gente que estoca livro com orgulho e que só tira poeira da estante para fazer uma foto bonitinha da biblioteca pessoal. Gente que come livro, bebe livro, dorme livro, veste livro e que, no meio da intensidade desse amor tão admirável, acaba se esquecendo de um pequeno detalhe: ler.

Esse pessoal se preocupa mais em comprar e divulgar do que com a leitura em si. E quando leem é só para dizer que o fizeram, um processo bastante automático, quer dizer... Na última página, a única mudança ocorrida é a contabilização da lista “Já li” que ganha mais um número.

É bom lembrar que consumidor de livro e leitor são duas coisas completamente diferentes. Se você compra barrinhas de cereal e carrega na bolsa para todos os lados, mas na hora de comer, prefere um Suflair (experiência pessoal), você não é adepto dos lanchinhos saudáveis. E nem adianta postar a barrinha filtrada no Instagram. Se você paga a academia, e só vai uma vez por mês para postar foto com pesinho, desculpe, mas... Enfim, os exemplos e as carapuças estão todos aí. Façam com eles o que quiserem.

Então, como sou um pouquinho sádica, procuro conversar com esse pessoal de vez em quando e dar uma espremidinha amiga. De leve.
─ E aí fulana, vi as (número bem grande) fotos que você postou do livro. Tá gostando?
─ Não muito, fala sobre (pequeno resumo copiado da internet)... Mas, acho que faltou (palavra estranha copiada de entrevista com crítico). Não era o que eu esperava.
 ─ É mesmo? E o que você esperava?
─ Ah, no mínimo um novo (primeiro romance do autor que é sempre melhor que o segundo). No máximo um pouco mais da ironia de um Machado, do detalhismo de um Eça, do hermetismo de um Pessoa, das invencionices de um Graciliano.

Como se vê, o novo “leitor voraz” espera muito de cada livro em que põe as mãos. Deve ser por isso que raramente gosta de algum. Essa é a diferença entre os novos e velhos típicos leitores jovens. O antigo (leia-se dez anos atrás) tinha que gostar de tudo, se não gostasse é porque não havia entendido. O novo não pode gostar de nada, porque ninguém está à altura do seu predileto, que é geralmente uma unanimidade na academia.  

Hoje em dia, quem gosta de livro que vende muito é vítima do marketing. Quem só lê autor desconhecido tem preconceito com o mainstream. Quem só lê gringos é deslumbrado. Quem só lê nacionais é bairrista. Quem acredita em crítica é cabeça vazia. Quem não dá a mínima é esnobe.

O grande problema que ninguém discute é a importância da experiência. O que o livro significou para você além das curtidas na foto e na frase de efeito que você postou. O que ele te disse de tão intenso que você não consegue nem explicar em palavras. O que é que esse livro fez por você, com os defeitos, medos, preconceitos e dúvidas que você tem, que ele não poderá fazer por mais ninguém. No fundo, é só isso que importa.

As pessoas me cobram sinopses e indicações. Não gosto de recomendar. O máximo que posso fazer é  contar a minha experiência com o livro. Só posso (na verdade, preciso) expor o que ele me fez pensar. Porque essa é a essência da coisa toda!

E, gente, o lugar de se emocionar não é em frente a uma prateleira de livraria, é em casa, de noite, no silêncio, com o livro aberto em mãos, desfiando as frases uma a uma que vão te transformar em algo novo, que vão te fazer pensar o que nunca pensou, entender o que nunca entendeu ou duvidar do que sempre acreditou.

Surtando em público você só reforça o tipo que você escolheu ser. Vivendo a experiência individual, sem plateia, você se encontra com esse estranho ser que não para de mudar nem de querer se conhecer: você mesmo. Quanto menos você se propor a encontrá-lo mais assustador ele lhe parecerá. Às vezes é bom sair da vitrine e encarar o espelho.


PS.: Antes de divulgar a capa, é bom conhecer o conteúdo. Vale para livros e pessoas.


domingo, 21 de julho de 2013

Uma geração na esquina da História

Postado em sua janela do apartamento 46, do Edifício Minas Gerais, ali na esquina da Rua Santo Amaro com a Rua do Catete, Mário de Andrade conseguiu ver o Brasil inteiro. Descobriu uma rua partida ao meio: “A rua do Catete é ainda caracteristicamente uma rua a dois andares.” Havia os do andar de baixo e os do andar de cima. Era na década de 1940, e era quase tudo como agora.

No andar de baixo, a certeza da miséria, que não leva ninguém além da fábrica, da casinha e da esquina. Essa gente que vive de trabalho bruto, que ri quando deve chorar e que possui a estranha mania de ter fé na vida.

“... mas tenho que descer para o andar térreo. Na rua, quem vive são os operários. Esse operariado do Catete, que mora por aqui mesmo, no fundo das casas, no oco dos quarteirões, nos vários cortiços que arriscam desembocar na própria rua. Muitos vivem de pé no chão, mesmo aqui, bem junto da sublime praça Paris. Não é gente triste, embora todos sejam de físico tristonho. O nível de vida é baixíssimo, só as mocinhas se disfarçam mais.”

“De noite, após a janta, ou nos domingos de casa limpa, eles têm que descansar e divertir um bocado. Então vêm na esquina, se encostam nas árvores e se ajuntam na porta dos botequins, conversandinho. Os bondes passam cheios do futebol que nos faz esquecer de nós mesmos. Mas estes homens nem de futebol precisam. Só conseguem é vir até a esquina, reumáticos de miséria.”

Voltando o olhar para o andar de cima, encontrei meus amigos, meus irmãos e a minha geração. Eles não são as pessoas com idade próxima à minha, são aqueles com quem compartilho sonhos.

“Contemplando essa gente do segundo andar, me ponho imaginando a classe a que pertence. É um lento exército de infiéis, que fazem todos os esforços para não pertencer à classe operária. Mas é fácil verificar que não chegam a ser essa pequena burguesia que vive agarrada ao seu bem-bom e indiferente a tudo mais. Não. É uma casta de inclassificáveis, cuja forma social de vida é a instabilidade. Enorme parte dela é pessoal de biscate, que a audácia faz pegar qualquer serviço, qualquer. Ou são empregados baratos que insistem em bancar alturas, e só começam vivendo quando de noite, no sábado, se transfiguram na roupa cinza e no sapato de praia e vão por aí, feito gatos, buscando amor.”

Não somos operários nem pequenos burgueses. Nem pobres nem ricos. Não temos religião. Não somos indiferentes. Nos sentimos mal colocados, sentimos nosso potencial escorrendo pelo ralo, desperdiçado em comentários ingratos que sempre começam com “esses jovens de hoje em dia...”. Não temos nome, nem classe. Também não precisamos de futebol. Sabemos que superamos o operariado na escala social, mas também sabemos que perdemos a felicidade ingênua de ir ali na esquina e ficar conversandinho. Temos grandes conversas (conversões?) sobre temas indigestos que quase sempre nos deixam deprimidos. Sabemos que alguma coisa está fora da ordem... Temos certeza de que vocês nos viram na televisão, nos jornais e não entenderam quase nada. Procurem se colocar nas nossas peles um pouquinho.

Nossos mestres nos ensinaram a gostar de poesia e agora dizem que sonhamos demais. Nos mostraram como funcionam as engrenagens que movem o país e agora insistem que nosso descontentamento é sem causa. Vocês nos instruíram nos valores da liberdade e da independência, e agora querem saber o nome do nosso líder. Não sabemos. Nossos heróis morreram de overdose, perdemos nossos exemplos. Nossos modelos nos empurraram para a frente, só um pouquinho mais à frente de nossos pais. Chegamos ao fim da rua da Amargura e estamos aqui parados na esquina do passado com o futuro. Demos um passo, só um passo. Descoordenado, mas gigantesco. O país inteiro tremeu. Estamos a meio caminho, mas acreditem, todas as forças do mundo estão nos puxando para trás...

Não é a hora de nos chamar de egoístas nem individualistas, nem de dizer que nos recusamos a nos tornar adultos. Enquanto nos sentirmos jovens (com 20, 25 ou 30) teremos força para tentar romper a curva do tempo em que nos encontramos. Todos sabem que é preciso mais força nas curvas, para acelerar e frear na hora certa, trocar a direção/sentido nem antes nem depois do exato momento. Se fizemos pouco, podemos ao menos nos orgulhar de termos feito algo.

Na esquina que o Sr. Andrade contemplava, só um problema era comum a todos: as baratas. Pragas não diferenciam classes. A saúva quase acabou com o Brasil rural, mas sobrevivemos, nos urbanizamos e agora temos asfalto, lixões e esgoto onde multiplica-se a nova praga. “Gasto mais da metade do meu ordenado em veneno contra as baratas”, queixava-se o escritor. Hoje, gastamos quase metade dos nossos ordenados para sustentar uma praga que parece invencível. Uma praga constantemente eleita e reeleita.  As gerações que nos precederam estão ocupadas em enriquecer e aposentar-se bem, e nos acusam de falta de ambição. Não queremos continuar apenas subindo andares, se sabemos que no próximo patamar seremos recepcionadas pelas mesmas baratas de sempre. Não vamos derrubar um presidente, como vocês fizeram, para eleger outros piores. Não queremos um novo nome, nem um novo partido, nem uma nova aliança. Queremos um modelo representativo de verdade. Não consigo imaginar uma ambição maior que essa.

Para entender “o que está por trás de tudo isso” ou “a quem interessam essas manifestações” basta fazer um exercício simples. Desligue a televisão, o computador e abra a sua janela. Descortine os seu olhar e observe a sua esquina. De qualquer esquina do país dá para ver o rastro sujo das baratas. Pragas não escolhem classes. Dá nojo, dá raiva e, às vezes, dá até uma vontade enorme de ir embora.


“Às vezes eu me pergunto, por que não mudo desta esquina?... Mas sempre o meu pensamento indeciso se baralha, e não distingo bem se é esquina de rua, esquina de mundo. E por tudo, numa como noutra esquina, eu sinto baratas, exércitos de baratas comendo metade dos orçamentos humanos e só permitindo até o meio o exercício da nossa humanidade. Não é tanto questão de mudança. Havemos de acabar com as baratas, primeiro.” Agora não tem mais jeito: ou o Brasil acaba com as baratas, ou as baratas acabam com o Brasil.

Dos dois andares da Rua do Catete...

À dura poesia concreta de nossas esquinas. Quase tudo igual.

sábado, 15 de junho de 2013

São Paulo lacrimejante



A gente sempre diz que ama odiar São Paulo, que adora reclamar dos nossos problemas tão paulistanos. A garoa, o frio, o trânsito, os preços, a violência nossa de cada dia. Espíritos da pauliceia antiga, olhai por nós!

As franjas da cidade a cada dia mais distantes. O medo que nos encara em cada esquina, nos olhos do menino encapuzado. O que era aquilo nos olhos dele? Ameaça, instinto criminoso, marginalidade ou medo também?  

Em São Paulo tudo demora, a fila do caixa, o ônibus, a ida e a volta. Em São Paulo todos têm pressa. Corremos de uma ponta a outra da cidade tentando encontrar um pouco de vida entre chegadas e partidas, na plataforma abarrotada de gente e sonhos que é São Paulo. 

Eu li os olhos dos vândalos de São Paulo e encontrei lágrimas tóxicas. Lágrimas artificiais produzidas por força de quem tem mais força. Eu vi violência e medo nos olhos deles. 

Eu li os olhos dos homens da lei de São Paulo e vi um sangue vermelho como a nossa bandeira. Vi homens marchando pela avenida símbolo de São Paulo, que defendem como se lá vivessem. “Se essa rua fosse minha... eu mandava cercar com barricadas de fogo”. Eu vi violência e medo nos olhos deles também.

Eu li os olhos dos paulistanos que não estavam nesse confronto, mas que conhecem o confronto diário que é viver, estudar ou trabalhar aqui, e encontrei lágrimas de sangue. Lágrimas legítimas, que a nossa natureza fria e veloz esconde nos cantos escuros onde outros olhos não nos podem alcançar.  

Eu li os jornais de São Paulo e eles estão furiosos com as vias interditadas. O jornalista esbravejou que perdeu três horas de vida para chegar em casa. Conheço gente que perde muito mais nos dias de “trânsito livre”, gente que perde bem mais vida em dias que os jornais chamam de “normais”.

Os jornais entendem a revolta, mas não aceitam a depredação do “patrimônio” da cidade. Qual é o verdadeiro patrimônio dessa cidade? Os jornais não concordam com a destruição dos prédios, mas assistem passivos à degradação das pessoas embaladas em comboios de metal que levam a mão de (man)obra de São Paulo para dormir longe, bem longe do “patrimônio da cidade”.

No metro quadrado mais caro de São Paulo, a maioria dos paulistanos só pode pisar para servir. E que volte para casa no metro quadrado mais lotado de São Paulo, para dormir no metro quadrado barato a que tem direito.

São Paulo precisa aprender que as pessoas que vivem aqui são mais importantes que os prédios daqui e que todas as ruas e avenidas de São Paulo são paulistas. A cidade mais rica do Brasil é onde se vive mais miseravelmente. Vivemos cercados de uma gente sem nome, só esperando pela sagrada hora do silêncio e, com sorte, um pouco de sono. Mas a cidade não dorme, os olhos da cidade nos observam envergonhados de seus filhos. 

Depois dos dias em que os olhos de todos os paulistanos lacrimejaram, quando o voo das pedras terminar e o efeito do gás passar, talvez a gente consiga ver melhor, e então descobrir a imensidão do nosso tamanho e o peso da nossa força. 


quinta-feira, 30 de maio de 2013

Diálogo com um leitor


“Descobri que ele é o motor da minha vida. Tudo o que eu faço, ele não faz. Tudo o que eu sou, ele não é. Só vivo para ser diferente dele.”

(Grande silêncio)

(Longo suspiro)

“Andei lendo você. Você escreve sobre histórias de mentira e histórias de verdade. Eu gosto de como você explica o falso, acho até bonito. Mas o seu jeito de contar a verdade é muito bruto.”

“Eu não brutalizo a verdade, eu metaforizo tudo. Isso é uma grande delicadeza da minha parte, você não acha?”

“Sinceramente, eu não acho não. Acho que a verdade é extremamente mais bonita quando nua. Se o problema é álcool, você não deveria usar açúcar para descrevê-lo.”

“Você não entendeu, meu bem. O álcool e o açúcar têm a mesma origem. Eu não floreio os acontecimentos, eu vou lá no fundo e arranco a raiz do problema (verdade), depois embrulho num papel bem bonito (metáfora) e entrego como se fosse um buquê, entendeu? Quem quer saber a verdade precisa tirar o embrulho.”


“Não entendi nada.”

“Não entendeu porque você não consegue tirar o embrulho... Funciona assim: um texto é um presente para alguém. Pode não servir para nada, mas é sempre um presente, e presente não se recusa. Os meus são presentes para quem tenta descobrir como eu sou.”

“Eu juro que estou tentando.”

“Eu sei. O que falta você entender é que chamar o peão de rei é a minha forma de demonstrar que me importo.”

“Só acho que esse jeito de escrever está te deixando louca.”

“Engano seu, escrever desse jeito é exatamente o que me impede de enlouquecer.”

“Você deveria escrever a nossa história um dia.”

“Até posso, mas você não entenderia uma palavra.”

(Longo suspiro)

(Grande silêncio)




PS.: Querido leitor, modifiquei suas palavras para ficarem mais bonitas, mas a essência do diálogo está toda aí. Desembrulhe com cuidado.